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É preciso morrer para se viver. Todos os dias, as células do corpo humano se esvaem e se renovam sem que percebamos esses processos. Os dias sucedem seguidamente em um constante nascer e morrer. Dizemos nascer do sol e pôr-do-sol. O ocaso nos fornece uma pequena morte da luz para dar lugar à noite repousante. A morte é vista como algo escuro e brumoso, distante, em que se usa a expressão "a noite eterna". A morte é sempre associada ao escuro. Em algumas culturas, a morte física é abraçada não com o profundo pesar do que se foi, mas, com uma comemoração e celebração pela vida da pessoa que parte, deixando saudades. Isso é mais comum nas culturas orientais. No Ocidente, a morte física deixa um rombo, um vazio, uma saudade avassaladora que, aos poucos, dá lugar a um novo momento de vida. A dor vai sendo deixada para trás, a nova rotina se estabelece e uma recuperação se faz presente. Nem sempre a superação acontece como no caso da partida de filhos ou quando uma vida em sua plenitude se esvai sem ter tido a chance de seguir em plenitude. Para todos, sem exceção, existe a necessidade de se lidar com a perda.
Para isso, o ser humano passa por cinco estágios de acordo com Elisabeth Kubler-Ross: 1. choque, negação e isolamento; 2. raiva, revolta contra tudo; 3. barganha; 4. depressão e, por fim, 5. aceitação, em que "o amor pela vida, quando a toma como um em fim em si mesma, se transforma em um culto pela vida" e, mais recente, a etapa 6. Ressignifigando criado pelo psicólogo David Kessler com o aval da família de Kubler-Ross.Esses estágios servem não só para o luto físico como também para o luto da morte das personas que habitam o homem. Há um momento em que o ser humano que, como os heróis, decide enfrentar o mundo e, entenda-se aqui, o seu mundo interno, busca solucionar aquilo que lhe massacra a alma. Quando se chega no ponto da decisão do enfrentamento, nu e cru, muitas coisas morrem e aquela parte que deseja viver também luta para não deixar de existir.É um processo complexo em que o ser humano cria muralhas para se proteger e, depois, necessita derrubá-las para nascer. É certo que ninguém gosta de sentir dor e é possível perceber que a dor psíquica, em alguns aspectos, torna-se pior que a dor física, pois, eventualmente, a dor física passará como quando se quebra um osso, que doerá até o momento do osso estar bom novamente. Sendo retirado o gesso, algumas sessões de fisioterapia, em breve, o homem esquece o incômodo causado pela fratura do osso. Assim, também é feito quando se vai a um dentista e há uma extração dolorosa de um dente. Mal necessário, mas, que não influenciará a vida do ser humano o suficiente para voltar a se preocupar com isso a não ser que a ida ao dentista seja associada a algum processo traumático, que acarrete em grande ansiedade, gerando no corpo reações até mesmo involuntárias diante da ida ao dentista.Os processos de associação no cérebro estão presentes o tempo todo, mesmo que sejam imperceptíveis para a consciência. Os olhos da alma sabem e veem tudo e deixam pistas inegáveis para os incautos que tentam deixá-los à distância e à deriva. Assim sendo, estes eventos vêm à tona, vez ou outra, gerando profunda angústia e desespero. Em um dado momento da vida, há a necessidade de se proteger o núcleo para que a funcionalidade se mantenha ativa até que se possa quebrar os muros de castelos de pedras.Aqui, cabe um parêntese, pois, pode se haver uma confusão quando há referência a eventos transformadores na vida do ser humano. É certo que quando vamos crescendo, absorvemos comportamentos a partir da infância, que nos impele a nos tornarmos homens e mulheres plenos. No entanto, nem sempre isso ocorre com todos nós porque alguns de nós experimenta situações de extremo sofrimento desde o nascimento e passamos por abusos inomináveis por anos até mesmo durante a vida adulta. Por exemplo, pessoas que passaram por guerra podem ter o costume de ter muita comida em casa ou trancar as portas de cômodos de suas casas.Toda situação extrema vivenciada sem que a mente esteja preparada gera uma tentativa de se resolver a questão de outra forma que não o enfrentamento. Os hábitos e comportamentos são adquiridos e deixados ali sem a devida importância até que surge uma crise como um tsunami varrendo tudo aquilo que levamos tanto tempo construindo.Acredito que os transtornos de pânico e ansiedade generalizada são um grito da psique para que se haja uma resolução daquilo que não pode ser resolvido antes pela falta de maturidade e preparo do ego. . Para Anne McNeely no livro Tocar, Terapia do Corpo e Psicologia Profunda, a solução para os problemas da alma é o enfrentamento. Não há outra forma de se chegar à paz. Os caminhos são diversos para se encontrar o momento de repouso aliviante.No inconsciente, os eventos vividos em intensidade (em qualquer fase da vida) ficam retidos e passam a ser vivenciados a todo instante e, pior ainda, quando se trata da aproximação do que já foi vivido anteriormente. Não só há uma ansiedade, que beira o desespero total como também há um dano psicológico profundo que leva a pessoa a: despersonalização, desconexão com seu corpo, uma sensação profunda de abandono, tristeza, depressão e isolamento social. Dependendo do que se vivenciou, há uma agressividade para com outros seres humanos devido ao medo recorrente da repetição do evento.O medo passa a ser uma constante na vida do ser humano que teve sua psique invadida de modo brusco. Há situações em que a lembrança deixa de existir também como forma de auto-proteção como no caso de abusos infantis, embora o comportamento desenvolvido posteriormente, demonstre claramente o que possa ter ocorrido como a erotização precoce. São pistas sutis e, talvez, delicadas demais, pois, na grande maioria dos casos de abuso sexual infantil, o perpetrador é alguém da família.As pessoas, vítimas de algum tipo de abuso de poder como, por exemplo, crianças presas em ambientes fechados por empregadas ou babás ou que tenham sido espancadas por alguém em quem confiavam, desenvolvem comportamentos na vida adulta ligados ao trauma inicial. Algumas passam a vida sentindo um grande vazio, sem realmente se sentirem integradas ao mundo. Sabem haver algo errado com elas, mas, não distinguem com clareza o que é, pois, o caminho de volta, normalmente, está relacionado em olhar as migalhas de pão deixadas para trás como no conto infantil de João e Maria. No entanto, em algum momento, os passarinhos comem as migalhas e o caminho se perde por ser extremamente dolorido encarar a questão.Então, como fazer? O que fazer com a dor que se lança na alma e corrói? Depende de cada caso. Em casos em que a memória ainda está ativa, a pessoa percebe a escolha entre permanecer com o medo embotando o discernimento e buscar um jeito de lidar com a situação e viver a vida normalmente. Em casos em que a memória não alcança e a dor se faz presente, é preciso coragem. Mas, novamente, como João e Maria, perdidos na floresta escura e com fome, o ser humano busca abrigo em uma casa de doces, em que podem comer à vontade (leia-se aqui comportamentos obsessivos, a tentativa de compensar o vazio seja com drogas, álcool, compras excessivas, auto-flagelo, etc). Na história, Maria se torna a empregada da bruxa enquanto o irmão fica preso, tendo que engordar para virar comida para a bruxa. Algumas pessoas acham mais seguro permanecer na casa da bruxa a enfrentar a saída da situação e até lá, é preciso fortalecer tanto a alma como o corpo. A tendência é separar corpo e mente, quando, na realidade, está tudo ligado e o corpo e a mente experimenta as lembranças juntos. Não há mente separada de corpo.Então, quando Maria percebe que a bruxa não enxerga bem, ela desenvolve uma estratégia e pede para João mostrar um osso de galinha, fingindo ser seu dedo. Assim, ela fortalece os dois ao cozinhar, ao nutrir. Com o ser humano também é assim, é preciso se nutrir para se fortalecer para o enfrentamento. Os heróis são fortes porque passaram por treinamentos árduos. Assim, devemos fazer também com nós mesmos, nos fortalecer para a grande jornada. Para os que trazem uma grande carga de peso sobre a alma e que projetaram muralhas gigantes à sua volta é um trabalho de mergulho ao próprio inferno, é um trabalho de se entregar a si mesmo e enfrentar o mundo de Hades e sair com a integridade digna do mais corajoso dos heróis. Morrer não é um ato simples como beber água. É um ato de desespero porque é quando se chega ao ponto da completa e total exaustão, quando a vida se torna uma sobrevivência minguada e desesperadora. É impossível respirar, que dizer, de viver!No entanto, quando se chega nesse pedaço da trilha, aquele ser conhecido de outrora deve morrer e outros conflitos surgem porque o que se conhece é o que é confortável. Aquele pedaço que morre quer insistir em existir, apega-se à vida como um último sopro, como o Golem do Senhor dos Anéis se apega ao anel. Voltando à história de João e Maria, em uma situação de oportunidade, Maria tranca a bruxa dentro do fogão e foge com o irmão e eles reconhecem o caminho de volta para casa. Na maioria das lendas, os heróis enfrentam lugares profundos e saem diferentes. Eles ainda não morreram, mas, enfrentaram a morte em suas lutas, os conflitos internos do si mesmo.Perseu, quando enfrenta Medusa, liberta Pegaso. Medusa trazia dentro de si, o veneno e o antídoto e nós também temos o veneno e o antídoto, mas, acima de tudo, antes de enfrentarmos o olhar paralisador de Medusa, precisamos nos fortalecer para que quando ela se for, possamos libertar nosso Pegaso interno e voar pelos céus.Mesmo aqui, também há o aspecto da morte, Medusa morre para dar lugar ao cavalo alado. O medo dessa morte simbólica está associado ao medo do que não se conhece. É possível também que a vida proporcione algum momento de grande ruptura e uma mudança radical, transformando a necessidade de permanecer em seguir adiante porque o que antes era apenas um vislumbre da felicidade, transforma-se em realidade e tudo que se quer é ter paz de espírito.Nesse instante, descobre-se que a morte é um renascimento, é a fênix que queima para ressurgir esplendorosa. É quando no abandono, percebe-se que não há mais porque sofrer. Mas, antes de atingir a total entrega, cada um caminha da sua forma, no seu passo e no seu ritmo até o momento crucial do enfrentamento, que, parece ser a única forma de matar de uma vez por todas os monstros que assombram nossa psique.No entanto, nós também somos esses monstros e ao matá-los também matamos um pedaço de nós, que caminhou por muito tempo ao nosso lado, que segurou nossas mãos inúmeras vezes em noites frias e tempestuosas. Talvez, devamos convencê-los de que eles não morrerão, mas, como nós nos transformamos, eles também se transformarão com a gente e que apenas viverão de forma diferente, em corpos diferentes, ainda ao nosso lado por terem feito parte de nós. Caminharão ao nosso lado rumo ao pico do Everest porque nossos monstros também torcem para que encontremos a luz. Nossa luz também é a luz deles.
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